28 março 2011

Convicção


Céu plúmbeo...
Aragem fria...
A rusticidade do caminho contrasta poeticamente com o cenário da natureza outonal, aquarelado em tons alaranjados.
O bucolismo do local enseja a reflexão acerca de um poder criador que paira bem acima de nossas estreitas percepções.
O silêncio é entrecortado vez ou outra pelo trinar de alguma ave solitária que busca naquele recanto, o vôo revigorante.
O dia declina...
Na singela estradinha de terra, a incerteza da passagem de algum transeunte àquelas horas devido à proximidade crepuscular, era evidente.
Entretanto, na morbidez das horas, passos céleres e imperceptíveis no princípio, foram sendo divisados, e pouco a pouco, personificados na figura de um homem. Envergava uma veste monástica escura, sandálias e um rosário cingido ao cordão que trazia preso a cintura.
Seguia seu roteiro totalmente alheio ao cenário natural envolto em terríveis conflitos interiores.
O largo capuz ocultava a figura de um jovem belo e com um senso altruístico extremamente desenvolvido, que desde cedo, obedecendo aos apelos de seu coração, optou pela missão na caridade e no amor. Ficou conhecido na vila em que prestava seus serviços sacerdotais junto ao povo sofrido, como Frei Igor.
O rapaz trazia as faces molhadas pelo pranto que extravasava a emoção que lhe tolhia o ânimo... Suas bases vocacionais tão bem urdidas e aprimoradas sofreram sérios abalos em suas estruturas ao serem testadas por outro tipo de amor...  No primeiro momento, o enlevo... Posteriormente, o atestado de que a primeira paixão visitava seu jovem coração...
Costumava sempre buscar refúgio na meditação e era naquele local que encontrava a paz necessária. Naquele momento sua mente estava atribulada e visitada por um único pensamento: a renúncia.
Chegando ao final de sua trilha, divisou o caudaloso rio com suas águas mansas. Sentou-se à margem, baixou o capuz e pousou os expressivos olhos castanhos no firmamento...
Naquele momento, entregou-se a sentida prece buscando o lenitivo necessário para a tomada de decisões que se faziam necessárias. Tinha a plena consciência que jamais poderia dar vazão ao amor que instalara-se silenciosamente em seu coração. Sua convicção interior desde muito o tem fortalecido e mantido firme no propósito maior a que sempre se propôs: seu missionato.
E chorou...
Quando deu por si, já era noite e a chuva começava a cair...
Levantou-se, ajeitou o capuz sobre a cabeça e refez seu trajeto de volta.  Mas, dessa vez, o fez com uma extrema paz interior. Sentia uma leveza indefinível. A chuva que agora caía mais forte, lavava além da terra do caminho, a sua alma, levando pra longe a inquietação e a dúvida que terminara por acalentar dentro de si.
Olhou mais uma vez para o Alto. Agora suas lágrimas eram de gratidão e reconhecimento Àquele que é Pai de todas as coisas. Era Nele, que sempre depositaria todo o seu ideal de vida e sua fé.
Karina Alcântara

    




21 março 2011

Puerícia


Barulho de chuva lá fora...
O cheiro úmido exala de fora para dentro de mim.
Sinto a saciedade da alma, nas reminiscências da minha infância...
Tempo bom... Tempo que vai longe, mas ao mesmo tempo, tão perto nas minhas recordações...
A friagem sopra adentrando a abertura sutil da janela, irrompendo em mim, sensações benfazejas há muito adormecidas nos recônditos da mente. 
Sensações que me construíram ao seu tempo...
Que foram extremamente benéficas para meu alicerce emocional.
Que me fizeram companhia enquanto presentes nos pequenos detalhes da vida, do cotidiano...
Esse contexto mnemônico me traz saudades. Mas saudades adocicadas, perfumadas, embaladas pelo onirismo da realidade que a vida pueril nos proporciona.
Cheiro de infância...
Cheiro de magia, de folguedos, de faz-de-conta, de cores, onde a realidade retarda sua presença, dando a oportunidade aos sonhos, de embalar-nos...
Os acordes melodiosos de composições infantis, ainda ecoam nos ouvidos.
Um tempo onde a infância era garantida.
Onde tínhamos o direito de sonhar.
Onde investíamos inteiramente na condição de ser criança...

Karina Alcântara

15 março 2011

Um Sonho



A escuridão que me alcançava não sei se era do meu interior...
Fato é que me encontrava percorrendo veredas desconhecidas e ermas buscando refugiar-me do que, eu não sabia identificar.
Adentrava em vielas, ruas e becos do que parecia ser uma pequena cidade...
Sentia minha respiração acelerada, tanto quanto as aflições que iam no meu íntimo.
Já dia claro, lembro de avistar uma simples moradia. Casinha branca, teto baixo igualmente à mureta que abrigava pequena portinhola.
Ao chegar, abri o portãozinho e à minha frente estava a fachada da casa com duas janelas de madeira e um corredor ao ar livre à direita. Logo à primeira porta à esquerda entrei. Uma pequena sala com algumas pessoas aguardando e algumas cadeiras vagas... Entrei, sentei e quase que intuitivamente, aguardei alguém.
Ouvia um vozerio imperceptível do outro lado da parede... Havia um corredor saindo da pequena sala de onde eu não tirava o olhar... Eis que assomou à sala vindo do corredor, um rapaz que olhou pra mim e fez um sinal para que o acompanhasse. O fiz quase mecanicamente, sem titubear e de cabeça baixa...
Saímos da casa demandando a rua. Em frente à casa passava uma estrada de terra, e só agora dei-me conta que ali era um lugar alto. Saímos conversando lado a lado primeiramente silenciosamente, tempo que me facultou a observação do lugar onde nos encontrávamos... Nas proximidades, nenhuma outra construção. À nossa direita, podíamos apreciar a vista panorâmica. O encontro do céu com o verde tapete natural era de uma beleza acalentadora...
Caminhávamos lado a lado e em certo momento, ele passou o braço em meu ombro, o que correspondi o abraço. Entendi que naquele momento eu já podia começar a narrativa das minhas aflições. Ele me escutou até o final sem questionamentos nem interrupções... Ao terminar minha preleção, ele estacou e me virou de frente pra ele. E a emoção tomou conta de mim quando nossos olhares se cruzaram... Imediatamente fui arrebatada por forte sentimento de carinho, amizade e confiança... Um amor fraternal numa intensidade nunca antes sentida de minha parte... Seu olhar era um misto de ternura e seriedade. Eu podia perceber que ele tinha grande ascendência moral sobre mim pelo respeito que sua presença me infundia.
Só então eu pude observá-lo. Pele alva, olhos escuros e muito expressivos, cabelos pretos bem penteados à moda tradicional. Ele me dava a impressão de o conhecer de há muito tempo, de sermos velhos conhecidos...
Pude desfrutar durante sua companhia, das energias salutares dos seus muitos conselhos sábios. Seu verbo fácil era o lenitivo que eu precisava para o fortalecimento de minhas bases espirituais.
Perguntei seu nome e ele falou: Alexandre!
Então nos despedimos com um longo abraço, e com afabilidade ofereceu-me sua disponibilidade no momento em que eu desejasse. E acrescentou que eu sabia onde encontrá-lo...
Acordei com as impressões mais profundas desse encontro, e que ainda perduram na minha alma...
Não vi asas, não vi halo, mas sua grandeza espiritual paira muito acima da minha...

Karina Alcântara

12 março 2011

Remissão...


Olho pro céu ...
Sinto mais do que vejo.
A totalidade que me preenche a alma
E circunda minha intimidade,
Faz-me projetar num mundo  
Que por seu atributo superior
Impulsiona-me à cura transformadora.
                                                      
Sinto-Te a reger minha vida.
A amar-me incondicionalmente,              
Mesmo frente aos meus desatinos
E vias que voluntariamente escolhi trilhar...

Com Teu amor silencioso, mas profícuo,
Deixa-me enveredar na minha tortuosa consciência...
Pois, se pelo amor não aprendo,
É pela dor, mãe das minhas escolhas deturpadas
Que irei divisar o caminho
Que me leva a Ti...

Pelo sofrimento, filho da invigilância,
Derramo lágrimas abençoadas,
Que lapidam minha alma como um buril remissor.
E gradativamente, apreendo em meu ser
As luzes da Tua lição de Amor...
Karina Alcântara


10 março 2011

Um Missionário...




Tudo era simplicidade...
A justaposição da parca mobília, emprestava uma harmonia contagiante a quem pudesse vislumbrar o ambiente interior daquela simples moradia.
A miscelânea de odores com notas florais ajustados perfeitamente ao cheiro de limpeza que imperava, é simplesmente balsamizante.
Em humílimo, mas digno fogão a lenha, fumega a última refeição do dia: um caldo de legumes que reconforta pelo aspecto e aroma que exala.
A casa não é grande, mas o suficiente para albergar qualquer transeunte que cruzasse aquelas plagas em busca de refrigério espiritual.
O piso é de tijolo de adobe de cor clara, confeccionado por mãos hábeis e artesãs, cuja dedicação impressa nesse revestimento bruto aliada à atmosfera reinante, torna-o de uma delicadeza singular.  A cobertura se faz adornada por telhas sustentadas por uma estrutura de caibros e ripas muito bem dispostos. É perceptível a maestria com que o anfitrião mantém a limpeza e organização do seu lar. Nada destoa naquele conjunto. Nenhuma peça está em desconformidade. Na mesa de madeira tosca da cozinha, um gracioso jarro com flores colhidas pela manhã atesta o gosto pelas belezas naturais que vicejam naquela região.
Leve aragem com cheiro de ervas em bafejos convidativos, sopra de fora da choupana. Um herbanário diversificado e muito bem cuidado é o cartão postal do espaço contíguo à cozinha.
Lá fora a natureza reverencia um dos espetáculos mais belos e dignos de nota: o entardecer em suas nuances róseas alaranjadas... O tempo começava a esfriar...
Um leve rangido nos gonzos da porta principal de madeira pesada, faz-se ouvir. Adentrando a casa surge a figura de um homem envergando uma simples túnica até o joelho, sobreposta a uma calça comprida em tecido de algodão cru. Aquela vestimenta alva harmoniza-se ao semblante adornado por um olhar sereno e emoldurado por cabelos encanecidos pela ação do tempo... É um olhar puro, curativo, cativante... Sua vida é de lutas, limpando feridas físicas e morais, suavizando com conselhos sábios a dura existência de muitos que ainda não haviam aprendido a lidar com as cruezas do caminho, por ainda não terem desenvolvida dentro de si, a destreza proporcionada pela fé verdadeira. Traz às mãos um feixe de lenha, para avivar as chamas de velha lareira que crepita debilmente, visto a friagem aproximar-se.
Chega e põe combustível na lareira. Caminha até o fogão e retira o caldo que já está pronto em silenciosa ebulição... Faz sua refeição em silêncio reflexivo... Após nutrir-se adequadamente, executa a última faina do dia... Louça lavada e guardada, dirige-se ao aposento particular, onde aos últimos raios do dia, vislumbra-se uma cama e uma cômoda de madeira, muito modestas. Processa a higiene adequada ao repouso da noite, e põe-se em silêncio meditativo na oração. Louva Aquele que é o Pai de todas as coisas, agradecendo a força com que Ele o agracia, na fiel execução de sua missão juntos aos filhos amados do Seu coração paternal, perdidos nos descaminhos morais. E na justeza das obrigações santificadas repousa um missionário de Deus, onde, pelo sono reparador da noite, prepara-se para mais um dia que se avizinha de trabalhos nobres e edificantes ...
                                                                                                                         
Karina Alcântara

05 março 2011

Soneto a Quatro Mãos


Tudo de amor que existe em mim foi dado.
Tudo que fala em mim de amor foi dito.
Do nada em mim o amor fez o infinito
Que por muito tornou-me escravizado.

Tão pródigo de amor fiquei coitado
Tão fácil para amar fiquei proscrito.
Cada voto que fiz ergueu-se em grito
Contra
o meu próprio dar demasiado.

Tenho dado de amor mais que coubesse
Nesse meu pobre coração humano
Desse eterno amor meu antes não desse.

Pois se por tanto dar me fiz engano
Melhor fora que desse e recebesse
Para viver da vida o amor sem dano.


Paulo Mendes Campos
e Vinícius de Moraes